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Resenha do espetáculo, por Juliano Sawa

Leia a seguir resenha do espetáculo escrita pelo ator e artista-docente Juliano Sawa, cuja publicação foi autorizada pelo autor.

Crédito da foto: Gustavo Zoppello

"Cantos de Coxia e Ribalta" é o atual espetáculo da Cia Lusco-Fusco, que completa catorze anos de trabalho. Há cerca de cinco ou seis anos, tive um breve contato com o ator e dramaturgo Gustavo Dittrichi, mas a peça em questão foi a primeira da equipe que assisti. Trata-se de um musical e, sendo assim, permeado de linguagem narrativa e, pelas impressões que tive, há nele uma plena necessidade de dividir uma grande paixão conduzida por um sensível, afetuoso e convicto olhar. Ao assistir esse trabalho, se confirmou toda singeleza observada nas palavras de Dittrichi anos atrás. Penso que é justamente aí que se distingue uma obra de esfera verdadeiramente poética diante das amarras comerciais, políticas e de puro virtuosismo que tanto nos cercam.

No teatro à italiana, um grupo de artistas-criadores narra as histórias de outro grupo de artistas. A ficção começa logo com um cartaz “precisa-se de artistas”. Precisam-se pessoas que possam embarcar no devaneio e em um desafio de ternura. São rebentos de histórias com representação simbólica pueril. As histórias historiadas são repletas de música e dança, convencionando assim os fragmentos poéticos em estações que manipulam o tempo. Logo no início, um poeta apresentador, na figura de arlequim, já nos convida a sair da rotina ordinária e uma outra narradora anuncia um trem com destino ao futuro. Uma moeda é dada pelo poeta a um garoto de rua. E a troco de quê? Do tempo e da sensibilidade daquele jovem. E em que resultará esse ato do poeta?...

Uma cigana, outros poetas e dançarinos dão a premissa das sagas que se seguem. Surge um personagem mercador poeta e as fábulas se entrelaçam num engenho a partir de então, mais incontrolável à nossa razão. Uma atriz jovem surge para um teste, os artistas se fazem boêmios, até nos esbarramos nos prazeres mundanos de um prostíbulo. São conduzidos, nesse narrar, o diretor do grupo que arrisca e perde tudo em meio a crises; a feliz faxineira do teatro, com a triste lembrança do preconceito que existe sobre quem é artista; a primeira atriz e o embate entre as tradições e a inovação; o tributo pago pela vida, o envelhecer e a necessidade de repassar a esperança no amanhã para que a roda continue girando. O amor ora vale ouro, ora poesia. Casos que se confundem com a história de cada um, em um campo dentro ou fora da esfera da arte, encorpado de devassidões, com uma mistura de vender a vida pelo prazer. Mas esse prazer, traduzido nessa obra, é o entusiasmo de se fazer arte.

Crédito da foto: Gustavo Zoppello

Pois bem, o espetáculo traz a atmosfera de show circense, de magia com elementos em cena que são caixas surpresas, com estruturas de banda musical e apetrechos reveladores das inspirações e canções, as cenas, os diálogos e a metalinguagem (de falar do teatro no teatro). E sendo assim, reflete com a plateia sua fome pelo encontro; mesmo, penso eu, se deparando com diversas crises que estamos vivendo de formação de público, por exemplo, do “querer a casa cheia”, uma vez que se busca o fenômeno dessa relação perene e efêmera.

Crédito da foto: Gustavo Zoppello

Há elementos simbólicos, materializados e sugeridos por canções, que amarram questões-chave do espetáculo: um relógio gigante centralizado e o tempo que corre no jogo entre passado, presente e futuro, um trem que tem seu destino e sabe por vezes deixar tudo para trás, um trilho por onde tropeçar, se ferir e recomeçar, estações que nos lançam a desafios constantes de sobrevivência, balões coloridos de inocência e doçura a que podemos pertencer, e uma garrafa de poção mágica que repassa a esperança e o amor que nos movem por pura felicidade e também pelo reconhecimento de fragilidade.

Crédito da foto: Gustavo Zoppello

Revela-se no entrecho da peça o funcionamento e a forma como caminha e se estrutura um grupo de artistas, a inconsistência no processo de se encontrar nesse mundo. As cenas trazem situações paralelas que se confundem com o próprio fazer teatral, envolvem fábulas simétricas que coexistem à narrativa convencionada com sua assistência. Os artistas da narrativa se tornam personagens de outras narrativas que se encaixam na dinâmica em que transcorre o espetáculo. Ora temos um poeta e um músico, que pensaram no argumento, e que contam sua própria experiência sob o corpo de narrador, que transpõem seus comparsas para histórias de outros artistas e que contam histórias que se confundem com as deles próprios, e com a nossa também. É o que senti e vivenciei, sem muitas chances de se organizar e resolver o que as coisas são. Visto que, parafraseando as falas do poeta na peça, “é na falta de resolução que a música se torna amor”. Um pequeno tratado sobre o amor à vida (na arte), na necessidade de se fazer arte pelo transbordamento do afeto que se dá, um amor nascido de feridas, e com urgência de tomar forma em uma condição derradeira. Como estando num último dia de vida...

Crédito da foto: Gustavo Zoppello

A peça avança sob várias informações de sons, cores, formas, transcorrendo por diversas atmosferas num jogo cênico que nos transporta a diversas espacialidades. Assim, atravessa-nos como um sonho alternado com a vida real, por vezes a tristeza de um é invadida pela alegria do outro, estabelecendo-se plena poesia.

Costuma-se pensar que a arte caminha na contramão do que a sociedade deseja e se transforma; mas suponho que seja exatamente o contrário, a sociedade é que caminha na banalidade e contra o que realmente importa. Não é à toa que o poeta é morto no final de uma história em busca de um epílogo, morto por um menino a quem compartilhou seu sonho e sua causa. Sendo assim, revelam-se os caminhos estreitos em que o significado maior da vida – representado na figura do poeta – tem de percorrer, sucumbindo por fim nas famigeradas garras de uma sociedade em declínio.

Crédito da foto: Gustavo Zoppello

Usei, por vezes, as palavras vida e amor. Procurei sinônimos, mas parecem que, pelas sensações que carrego, são as que traduzem grande parte do que posso dizer.

Juliano Sawa é ator e artista-docente, graduado em licenciatura em teatro pela Universidade de Sorocaba. Construiu sua formação artística através de trabalhos, oficinas e espetáculos em diversos grupos teatrais no interior do estado de São Paulo. É diretor e proponente do projeto de extensão teatral Os Farropas, vinculado à Escola Estadual Brigadeiro Gavião Peixoto, na periferia da capital paulista onde atua como professor efetivo de Arte desde 2009. Recentemente concluiu o Curso de Atuação na SP Escola de Teatro.

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